15 de dezembro
Foi o silêncio que me fez perceber que algo errado estava acontecendo.
Minhas manhãs sempre começavam com o barulho do trânsito e do posto de gasolina em frente a minha casa, que tinha sido somado ao nada agradável barulho de uma obra grande logo ao lado.
Mas, naquela manhã, não havia barulho nenhum.
Levantei tropego, e enquanto jogava água no rosto pensei que talvez pudesse ser feriado.
Ainda era dia quinze. Não podia ser feriado.
Fui até a janela da sala. Nenhum movimento lá fora, nenhum frentista no posto, nenhum carro passando. Estranho.
E aquele silêncio todo estava me incomodando.
Peguei o celular, pensando que talvez tivessem decretado algum feriado e eu não sabia. A internet não funcionava. Nem wi-fi, nem dados móveis. Nada.
Bem, vamos fazer do jeito antigo, pensei. Vou na padaria da esquina. Lá, com certeza, vão saber o que aconteceu.
Me vesti rapidamente e sai. Lá fora a sensação de que tudo estava silencioso demais foi amplificada. Caminhei um pouco. A padaria estava fechada.
Fiquei ali, apalermado, olhando para aquelas portas fechadas, até que um barulho me despertou do meu transe.
Uma moto, dirigida por uma mulher, subia a avenida Brasil e parou no semáforo. Ela me viu e veio em minha direção.
Tirou o capacete rapidamente, bagunçando a cabeleira ruiva.
-Mas que porra tá acontecendo? – ela disse.
Eu gostaria de saber também.
17 de dezembro
– Senta aí, pega um pedaço de torta, está bem boa – sorriu para mim o homem que havia se apresentado como Adalberto, já se servindo de um pedaço.
Ele era baixo, atarracado e forte, e estava vestido extravagantemente. As roupas simplesmente não combinavam, como se ele tivesse se jogado num guarda roupa e saído de lá vestido.
Sentamos, Alice e eu. Ela se serviu de um pedaço de torta quase que imediatamente. Eu estava mais interessado em informações do que em comida.
– Desde quando vocês estão aqui?
– Desde o dia em que a..hã…coisa, aconteceu. Eu moro, ou morava, ali no Bergamaschi. Caminhei até aqui e pensei, porque não entrar? Eu tava com fome, e nunca tinha entrado aqui…
O cara comia de boca aberta. Não era uma cena bonita de se ver. Me virei para a mulher que o acompanhava, que tinha dito se chamar Amanda.
– E você?
Ela sorveu um gole de suco antes de responder. Tinha maneiras mais elegantes do que Adalberto. Era a mais alta de nós quatro, magra, cabelo pintado de loiro, mas com as raízes aparecendo.
– Eu moro ali perto do Conjunto Esportivo. Quando a coisa aconteceu eu subi o pontilhão da Magay e encontrei o Adalberto vindo perto do Estádio.
Uma história parecida com a minha e da Alice. Peguei um pão de queijo.
-E você, professor? Onde vocês estão?
Eu tinha dito a Adalberto que trabalhava numa escola e agora ele achava que eu era professor. Achei melhor não corrigir.
-Estamos na minha casa, ali na esquina do pontilhão da Taves. Encontrei a Alice na esquina da Brasil no dia que a… coisa, aconteceu.
-Bem, vocês podem ficar aqui agora. O Angatu Hotel é todo nosso – e ele fez um gesto que abarcava todo o entorno.
-Suponho que seja melhor ficarmos todos juntos sim – disse eu, pensativo. Deveríamos procurar mais sobreviventes – acrescentei.
-Também acho, replicou Adalberto. Mas temos que nos prevenir. Vocês estão armados?
Eu e Alice arregalamos os olhos.
– Ora, professor – sorriu Adalberto, enquanto tirava um revólver da cinta. Nós não sabemos quem pode ter sobrevivido, né? Eu e Amanda demos uma passadinha ali perto da Etec. E sorriu.
Não gostei do sorriso dele.
20 de dezembro
Com a chegada de Agnes agora o nosso grupo tinha oito pessoas.
A tínhamos encontrado ajoelhada em frente do Santuário de Nossa Senhora Aparecida, rezando. Ela estava fraca e abatida. Se recusava a roubar comida dos vizinhos, mesmo sabendo que não tinha ninguém lá. Estava sobrevivendo de bolachas que tinha em casa. A muito custo conseguimos levá-la para o hotel.
Ela foi recebida com festa pelos outros, principalmente por Alexandre, o mais jovem de nós.
-Ela parece a minha vó – disse ele, simplesmente.
Alexandre tinha sido encontrado na Avenida Brasil. Tinha arrombado a Casa Aliança e estava se refastelando com iogurtes. Chorou quando nos viu e contou que tinha treze anos e morava num sítio no bairro do Perdido. Tinha uma história igual a nossa: ao acordar pela manhã todos haviam desaparecido, até os animais de criação. Menos o seu gato, o Perebas, que ele trazia no colo. Tinha vindo à cidade em busca de comida.
O desaparecimento dos animais batia com o que vimos na cidade. Nenhum gato, nenhum cachorro, não havíamos encontrado nada, nem uma mísera maritaca. Alice jurava ter sido picada por um Aedes Egypti uns dias antes, mas achei que ela estava imaginando coisas.
Complementavam o nosso grupo André e Adriana. Ele tinha sido encontrado no Posto Bandeiras e morava ali por perto. Tinha arrombado o Supermercado Vitória e foi assim que percebemos que tinha alguém por ali. Ele estava em forma, era professor de educação física. Falante e animado, ele estava sempre disposto a fazer o que lhe pediam.
Igual animo não tinha Adriana. Ela morava no Jardim Paraíso e a encontramos vagando próxima ao Fórum. Roupas sujas, o cabelo comprido desgrenhado e os pés feridos por andar sem calçado. Estava claramente em choque, não falava com coerência. Veio pacificamente com a gente e melhorara nos dias seguintes, mas falava pouco e demonstra estar muito abatida.
Tínhamos esquadrinhado a cidade toda em carros que pegamos no Santa Mônica. Adalberto pareceu gostar demais da tarefa. Escolheu um belo SUV branco de uma marca japonesa. Alice tinha se contentando com um modelo alemão. Eu não dirigia, então fazia companhia a ela durante as expedições de busca. Amanda ficava no hotel, coordenando tudo com walkies talkies que tínhamos roubado da Tabacaria do Povo. Adalberto tinha insistido em levar algumas armas também. Eu concordei.
Era isso. Oito pessoas, quatro homens e quatro mulheres, um gato e um mosquito da dengue. Era tudo o que tinha restado de uma cidade de trinta mil habitantes.
Enquanto os outros acolhiam Agnes eu sai para tomar um ar. Estava reflexivo e angustiado. O que for que tivesse acontecido, tinha sido muito grave. Será que haveria sobreviventes em outras cidades? Podíamos esperar pelo menos um número igual de pessoas em Adamantina, que tinha quase o mesmo tamanho daqui. Será que a “coisa” tinha sido igual em todos os lugares?
Fiz uma conta rápida de cabeça. Se a “coisa” tivesse atingido todos os lugares da mesma forma, em Presidente Prudente teriam sobrado umas sessenta pessoas. Será que elas tinham se encontrado, como nós? Estariam se dando bem? Seriam boas pessoas?
Dividi meus pensamentos com Adalberto depois do jantar, enquanto tomávamos um vinho. A refeição tinha sido agradável. Todos ficaram animados pela chegada de Agnes. Até Adriana saiu do quarto e pareceu estar um pouco mais animada. Agora que estava limpa tinha se revelado uma bela mulher, com profundos olhos negros e um rosto bonito.
Adalberto me ouviu pensativo. E depois concordou comigo. Mas a conclusão que ele chegou não me agradou.
-Temos que armar todos e ensiná-los a atirar. Menos a Agnes, ela mal consegue segurar uma colher. Se existem outros grupos de sobreviventes em outras cidades, eles podem vir até aqui e querer tomar o que é nosso. Temos que estar preparados para resistir.
-Mas porque eles fariam isso? – retruquei.
-Não sei. Mas é o que eu faria. Exploraria outras cidades, e tomaria seus recursos.
-Mas não podemos viver todos juntos em harmonia?
Adalberto riu.
-Não estamos num romance, professor. Na vida real as coisas não funcionam assim.
Fiquei com vontade de perguntar que experiência ele tinha para dizer isso. Estávamos numa situação que nenhum de nós tinha vivenciado antes. Mas me calei e resolvi fazer o jogo dele.
-Se o que você diz acontecer, estamos numa posição estratégica ruim. Esse hotel é muito aberto. Ruim de defender – disse, como se entendesse alguma coisa do assunto.
-Você tem razão. Acho que deveríamos nos mudar para o Edifício Saint Moritz. É perto e fácil de defender.
E mais uma vez não gostei do sorriso dele.
25 de dezembro
Foram Amanda e Alice que haviam insistido em fazer uma ceia de Natal. Ia servir para animar o pessoal e também como despedida do hotel. Havíamos chegado num consenso e nos mudaríamos para o Edifico Saint Moritz.
De manhã as quatro mulheres tinham saído juntas, até Adriana, agora bem mais animada, e voltado com sacolas, vestidos, sapatos e maquiagem. Claro que tinham arrombado alguma loja. Mais de uma, provavelmente. Estavam preparando uma super produção. Olhei para as minhas roupas. Tinha trazido algumas de casa, nada adequado para uma festa. André me chamou para “fazer compras” também. Levamos Alexandre conosco, e o garoto estava empolgado. Só Adalberto não estava a vista. Ele havia saído de carro de manhã sem dizer nada a ninguém. Talvez estivesse “comprando” também.
Escolhi uma calça de risca de giz. Sempre achei essas calças elegantes. Talvez fosse brega, não sei. Peguei um sapato de bico quadrado, mas levei alguns tênis também, os meus estavam em péssimo estado. Fiquei olhando para o meu pé calçado com um tênis de uma famosa marca americana. Pela etiqueta, aquele tênis custava metade do meu salário. Era surreal.
Peguei umas camisas sociais e dei minhas “compras” como encerradas. Alexandre provava um tênis após o outro, sem saber qual escolher. Acabou levando dois daquela marca alemã, além de calça e camisa.
André entrou no carro carregado de sacolas. Tinha “comprado” muita coisa. Ele estava claramente tentando impressionar Adriana. Agora que estava mais animada ela parecia corresponder às investidas dele. Tinha visto os dois se despedirem com um beijo depois do jantar na noite anterior. Podia jurar que tinha ouvido a porta do quarto dela se abrir depois que todos tínhamos deitado. Talvez isso justificasse o bom humor matinal dela. Que pensamento mais machista, disse para mim mesmo. Mas foi o que me pareceu.
A formação de casais tinha sido algo natural. Adalberto e Amanda estavam juntos e não escondiam de ninguém. Dormiam no mesmo quarto e trocavam beijos de língua e tapinhas na bunda em público. Eu e Alice éramos mais discretos nas demonstrações públicas de afeto, mas não escondíamos de ninguém que também estávamos dormindo juntos.
Eu tinha lido em algum lugar que eram necessários dez mil seres humanos para preservar a continuidade da espécie, por causa daquelas coisas complicadas de genes recessivos e mutações. Bem, Osvaldo Cruz estava contribuindo com três casais até agora.
-Agora vamos aos presentes ! – André me tirou do meu devaneio. Sim, ainda tinha os presentes, havíamos combinado isso. Alexandre bateu palmas.
Seria uma longa manhã.
26 de dezembro
Acordei de ressaca. Eu não estava acostumado a beber tanto. Na verdade, antes da “coisa”, eu não costumava beber era nada. Era um bebedor iniciante.
Ao meu lado na cama Alice roncava e babava. Tinha me surpreendido ao chegar para a ceia com um belo vestido vermelho e sapatos da mesma cor, além de um colar enorme. Mal tinha se sentado e se serviu de um prato que alimentaria três pedreiros famintos. Essa era a minha garota. Elegante e faminta.
A ceia de Natal foi animada e aconchegante. Pela primeira vez todos pareciam bem. Havia comida de sobra graças ao Supermercado Faciliti. Três perus, carne de porco, lasanha, macarrão, arroz – sem passas, graças aos deuses – maionese, salpicão, muito vinho, champanhe e uísque.
Eu lembrava de flashes do que tinha acontecido. Lembrei de ter ganho uma gravata e uma carteira.
Minha cabeça latejava. Levantei, ainda meio tonto. Ao chegar no corredor senti cheiro de café e percebi o som da chuva. Não estava chovendo ontem. Não tinha chovido nenhum dia depois da “coisa”, pelo que eu me lembrava.
Cheguei na cozinha e André estava lá, comendo os restos da ceia avidamente. Ele tinha bebido pouco na ceia, estava claro pela forma esfuziante que ele me cumprimentou. Resmunguei um bom dia e me servi de um xícara grande de café. Depois do primeiro gole minha alma voltou ao corpo e conseguir pensar com coerência.
-Essa chuva vai estragar a nossa mudança… – comecei.
André deu de ombros.
– Não precisamos nos apressar, o prédio não vai sair correndo de lá – disse, debochado.
Ele estava com um sorriso de quem tinha transado na noite anterior. Eu e Alice tínhamos transado? Não me lembro. Será que devo perguntar ou seria indelicado?
Uma rajada de vento mais forte balançou a janela e me tirou dos meus pensamentos. A luz piscou. Depois, mais uma vez.
– A energia está assim desde que eu acordei – disse André, despreocupado.
– Se cair algum fio nós…
– Vamos ficar sem energia porque ninguém aqui é eletricista – completou a minha fala Adalberto, entrando na cozinha. Bom dia.
Adalberto tinha sido uma das sensações da ceia. Chegou vestido num terno verde, com calças e sapatos da mesma cor. Não faço a mínima ideia de onde ele conseguiu aquilo, nem sabia que vendiam coisas assim aqui na cidade. Bebeu quantidades cavalares de uísque com soda. A última coisa que me lembro dele era se agarrando com Amanda.
-Sim, é verdade – concordei, enquanto Adalberto sentava e se servia. Isso pode ser um problema – comecei.
-Esse hotel tem gerador? – perguntou André.
Ele mal havia acabado de falar quando a energia acabou de novo.
07 de janeiro
E então parou de chover.
Tinha chovido sem tréguas desde depois do Natal. A energia oscilou muito. Perto da virada do ano ficamos quatro dias no escuro.
Toda a comida perecível estragou. A era dos belos bifes suculentos, dos perus e frangos ficara para trás. Agora comíamos arroz, feijão e macarrão. A chuva tinha estragado as verduras nos sítios onde nos abastecíamos também. Nem salada tínhamos.
Quando ficou claro que a energia não voltaria, ou demoraria a voltar, Adalberto e André organizaram uma verdadeira operação de guerra. Foram em todos os mercados disponíveis e trouxeram os perecíveis que puderam encontrar. Colocaram tudo em isopores com o gelo disponível. Foi uma solução paliativa. Mesmo assim, muita coisa estragou.
Agora a energia estava de volta. Como? Ninguém sabia. Algum sistema automático. Algum sobrevivente eletricista em algum ponto da rede a reparara. Ninguém sabia. Ninguém se importava. Tarde demais para a nossa comida, pensei amargamente.
A moral do grupo estava baixa. Estavam todos irritados e tristes, mas eu esperava que a parada da chuva animasse a todos.
Contribuíra muito para o acabrunhamento do grupo a postura de Agnes. A idosa senhora não parava de repetir que estávamos sofrendo um castigo divino, que depois do arrebatamento vinha o diluvio e que nós tínhamos que nos arrepender dos nossos pecados se quiséssemos ser poupados das torturas do inferno.
Mesmo debaixo de chuva Agnes saia todos os dias para rezar no Santuário Nossa Senhora Aparecida. Quando Amanda expressou preocupação, Adalberto disse sardonicamente que devia deixar ela ir. “Quem sabe ela pega um pneumonia e morre” e deu uma das suas risadas desagradáveis.
Naquele primeiro dia sem chuva ela saiu pela manhã e Adalberto aproveitou para convocar uma reunião com nós sete.
-Vamos organizar uma expedição até Parapuã para procurar comida fresca – começou ele, olhando para André.
André tinha se tornado o braço direito de Adalberto. Com os votos dele, de Adriana – os dois estavam declaradamente juntos agora – e Amanda, eles tinham a maioria em todas as votações, porque Agnes sempre se recusava a votar, tornando eu, Alice e Alexandre a minoria.
– Porque Parapuã? Pode ter acabado a energia lá também – afirmei, irritado.
– Porque lá é pequeno e perto. Se tiverem sobreviventes serão poucos. É uma operação de baixo risco. Iremos em três carros e quero vocês três conosco.
O tom dele era autoritário. Eu ia retrucar, mas Alice percebeu e apertou a minha mão. Assenti com a cabeça e os preparativos começaram imediatamente.
Quando chegamos no primeiro supermercado em Parapuã ficou claro que ele tinha sido arrombado. Havia vidro quebrado e umas manchas de sangue seco. Adalberto e André entraram na frente, armas em punho. Eu vinha logo atrás, arma na cintura, tenso e de ouvidos abertos. Nos espalhamos, cobrindo os corredores lentamente. Os outros vieram atrás de nós.
Foi Alexandre que chegou primeiro no balcão de frios.
– A carne está boa – começou ele, e então soltou um grito.
Corremos para lá. E ninguém estava preparando para o que vimos.
Uma garotinha de uns sete anos estava caída atrás do balcão. Evidentemente estava morta a pouco tempo. Tinha uma expressão triste no rosto.
Alexandre chorava agarrado a mim. Todos, até Adalberto, estavam chocados. Amanda se adiantou e examinou o corpo. Ela tinha nos dito que era técnica em enfermagem.
– Ela tá com as mãos e os pés machucados e infeccionados. Provavelmente se feriu no vidro da porta. Deve ter morrido de sepse.
Se levantou e então o lábio dela tremeu. Começou a chorar copiosamente nos braços de Alice, que também começou a chorar.
Eu desviei o olhar e me afastei. Era a primeira morte que víamos. Nós sabíamos que nossos entes queridos estavam mortos. Nossos pais, mães, esposas e filhos, até nossos cunhados, gatos e cachorros tinham desparecido. Só podiam estar mortos, ou tinham sido arrebatados como dizia a Agnes. Mas era o primeiro corpo que encontrávamos. Senti um peso no peito. O instinto de sobrevivência tinha nos mantido ocupados, distraídos da perda daqueles que amamos. Mas agora a morte estava ali, na nossa frente, personificada em uma criança de olhos tristes.
Adalberto foi o primeiro a se recuperar e começou a recolher as carnes. A garotinha tinha comido pouco. Tinha muito leite espalhado e bolachas. Como tinham sido os últimos momentos dela ali, sozinha e doente? Esse pensamento não deixava a minha mente.
Alice apareceu com um lençol e cobriu o corpo da garotinha.
-Eu quero enterrá-la – disse Amanda, fungando o nariz.
-Não temos tempo para isso, porra! – berrou Adalberto. Pode ter outros sobreviventes. Eles podem ter armas. Temos que pegar tudo e sair logo.
Saquei a minha arma.
-Baixa a bola, caralho. Se ela quer enterrar a criança, vamos enterrar a criança. Temos todo o tempo do mundo. – gritei.
-Você não tem coragem de atirar em mim, professor…começou Adalberto, e ele sorria.
-Dessa distância até a Agnes transforma essa sua cabeça grande numa polpa de fruta, imbecil – retruquei, valente.
Ninguém se mexia, ninguém sequer respirava. Vi André com a mão na arma que estava na cintura. Só esperava uma ordem de Adalberto. Se ele fosse rápido o suficiente, eu estaria morto. Mas não abaixei a arma.
A ordem de Adalberto não veio. Os segundos escorriam lentamente, pareciam anos.
-Tudo bem, enterrem a garota. Tem uma praça a duas quadras daqui. Agora abaixa essa arma, professor – disse Adalberto.
Então eu fui procurar uma pá.
14 de dezembro
Amanhã vai fazer um ano que a “coisa” aconteceu.
Agora eu, Alice e Alexandre moramos na casa que foi de uma tia minha, próximo da escola Maria Aparecida Lopes. Escolhemos lá porque perto há um supermercado que não tinha sido arrombado e o terreno da escola serviria para fazermos uma horta.
Depois do acontecido em Parapuã a convivência com o grupo de Adalberto ficou insustentável. Nos mudamos antes de algo pior acontecer. Agnes também abandonou o grupo. Foi morar na “casa de Deus”, ou seja, lá no velho santuário onde a encontramos. De vez em quando levamos uns alfaces para ela.
O grupo de Adalberto partiu a cinco meses em direção a Adamantina. Nunca mais voltaram. Temos a cidade inteira para nós quatro. E para o Perebas, que só sente falta de passarinhos para caçar.
Em breve, seremos cinco. Alice está grávida. Muito grávida. Estimamos sete meses, talvez oito.
Enquanto monto o berço que será do meu futuro filho ou filha, fico pensativo. E se o parto não dar certo. E se os dois morrerem? E se a energia acabar e não voltar nunca mais? E se a comida acabar? E se a horta não prosperar? E se um grupo de outra cidade vier e nos matar a todos?
Apesar dessas preocupações, eu nunca tinha estado mais feliz. Minha nova vida era, sob muitos aspectos, melhor do que a antiga. Tinha perdido peso, parado de fumar e dormia como uma rocha depois de um dia de trabalho pesado na horta e na plantação de mandioca que Alexandre estava começando. Acordava sempre de bom humor e ao lado de uma linda mulher.
Era melhor do que passar o dia empurrando mouse e batucando num teclado. Ah, isso era mesmo.
Terminei de montar o berço e ganhei de recompensa um suco de limão natural e um beijo na boca da mulher que eu amava.
A vida poderia ser boa, afinal.
15 de dezembro
Silêncio.
Aquele silêncio opressivo de novo.
Me levantei da cama, assustado. Eu teria sonhado?
Não, não tinha sonhado. Eu estava na cama onde horas antes tinha adormecido feliz ao lado de Alice, terrivelmente grávida.
Mas aquele silêncio me incomodava.
Eles devem estar na horta, pensei eu. Levantei e joguei água rapidamente no rosto.
Na cozinha, o café estava frio. Era de ontem.
Tive um pressentimento. Abri a porta e gritei.
Ninguém respondeu.
Gritei mais.
Chorei.
Corri.
Eu estava sozinho.