O garoto

Se, ao invés de ser uma bola flamejante de gás a milhares de quilômetros de distância, o Sol fosse um ser dotado de sentimentos, ele teria ficado surpreso ao iluminar aquela cidadezinha no começo de agosto de um certo ano, a muito, muito tempo atrás.

Por que algo havia mudado. Um bebe havia nascido pouco antes da aurora. Seu nome era Talisson, e em nada era diferente de outros bebes. Era gordinho, cabeludo e com cara de joelho, como costumam ser os filhotes de humanos quando nascem.

Mas coisas extraordinárias começaram a acontecer naquela cidadezinha depois do nascimento do Talisson. Eram tão incomuns que passaram despercebidas.

Na mesma manhã do nascimento de Talisson, o respeitado administrador do hospital local morreu engasgado com uma jujuba. Sua morte foi muito comentada e lamentada. Ele viraria, alguns meses depois, até nome de rua.

A homenagem seria cancelada se todos soubessem que ele era pedófilo.

Meses depois Talisson foi levado à pia batismal, na igreja matriz da cidadezinha. Naquela noite, um coroinha que tinha participado da cerimônia morreu afogado na piscina da casa dos pais. Ele sabia nadar muito bem.

As almas dos gatos filhotes que ele tinha afogado naquela mesma piscina comemoraram efusivamente.

Quando entrou na creche aos dois anos Talisson foi recebido por Beatriz, uma cuidadora simpática, amável e inteligente. Ele a adorou e foi no seu colo sem protestar.

Beatriz amanheceu morta na manhã seguinte, com uma baba sanguinolenta escorrendo da boca. Sua única filha foi morar com a avó e ficou feliz porque a partir de então não apanhava mais de cinto todas as noites.

Talisson, é claro, nem desconfiava do que acontecia a seu redor. E nem aqueles que conviviam com ele. Afinal, morria gente todos os dias, não é mesmo ?

O menino cresceu, em estatura e personalidade. Era tido como muito adulto para sua idade. Pouco ligava para brincadeiras e raramente sorria. Tinha uma rapidez de raciocínio impressionante e de vez em quando dizia umas palavras difíceis que sua mãe, uma pobre operária inculta, não sabia onde, ou com quem, ele tinha aprendido.

Aos dez anos Talisson foi acometido de uma terrível moléstia. Febre altíssima e delírio persistiram por uma semana, e até os médicos já tinham perdido a esperança de salvá-lo quando, subitamente, ele se recuperou tão rápida e completamente que algumas enfermeiras chegaram a falar em milagre.

Mas alguma coisa havia mudado em Talisson. Ele agora sabia qual era a sua missão.

Na semana seguinte após a sua dramática recuperação, Tallison deixou a escola no horário habitual e, aos invés de se dirigir diretamente para casa, virou a esquerda na avenida principal e foi até a Botica do Euclides. Era horário de almoço e o farmacêutico estava sozinho no seu estabelecimento.

-O que você quer, garoto ?

-Eu sou o anjo da vingança. Por teus pecados, agora morrerás.

Quem encontrou o corpo de Euclides foi sua esposa, quando foi levar-lhe o almoço. O médico assinou o atestado de óbito como infarto. Seu velório e enterro foram muito concorridos. Entre aqueles que lamentaram a sua morte estavam algumas mulheres que tinham feito um aborto com ele.

E assim, nos meses e anos seguintes, morreram a professora masoquista, o vereador que gostava de sentar crianças no seu colo e o comerciante que tinha caixas cheias de fotos impróprias. E ninguém percebeu nada.

Bem, na verdade, alguém percebeu. Alice, a mãe de Tallison. Ah, as mães. Elas sabem. Elas sempre sabem, mesmo que não saibam bem o que sabem.

Alice vai percebido algo diferente nos olhos do seu filho. Havia notado que as vezes ele se ausentava, ou se atrasava e que quando voltava estava retraído e distante. Alice achava que era alguma consequência da febre que o garoto havia tido. Muito religiosa, multiplicava as ladainhas, os salve-rainhas e os terços que rezava todas as noites, entre lágrimas, para que o filho se recuperasse.

Tallison se apiedou daquela que havia sido escolhida para ser sua mãe terrena. Ela já havia sofrido tanto ! E então ele passou a dar mais atenção a ela, a tratando com gentileza e bondade, e nesses momentos parecia quase um garoto normal, para grande alegria de Alice.

Mas, ao se aproximar dos doze anos, Tallison sabia que sua missão estava chegando ao fim. Naquela noite, na véspera do seu aniversário, ele foi ao seu quarto e orou para Aquele do Alto confirmasse a sua missão.

Confirmação recebida. Tallison suspirou e pulou a janela pela última vez. Quando retornou Alice ainda estava confeitando o bolo para seu aniversário no dia seguinte.

-Ouça-me mulher, que o tempo é curto. Em poucos minutos deixarei essa terra e voltarei Àquele que me enviou.

-O que você está dizendo, Tallison, meu filho ?

-Tallison é o nome que tu me destes, mulher. Sou Raguel, o anjo da vingança do Senhor. E então, por um segundo, ele se mostrou em toda a sua glória para Alice.

Foi demais para a pobre mulher. Suas pernas desmoronaram e ela caiu de joelhos, e tremia.

-Nada temas, mulher, porque fui enviada a ti por Aquele que está no alto. Os céus receberam suas preces. Tu, que quando eras abusada e seviciada oravas ao Altíssimo, pedindo justiça, agora a recebeu. Aquele que a maltratava encontrou a morte, e antes deles seus comparsas.  Ainda hoje a alma dele será recebida no inferno por uma legião de demônios, e seu sofrimento será eterno.

Após dizer isso, Raguel a abençoou e desapareceu num clarão de luz. Alice ainda ficou muito tempo ajoelhada no chão gelado daquela cozinha humilde, meditando sobre o que havia acontecido.

Quando se levantou, sabia que tinha que se preparar para o velório do seu pai.

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